10.3.09


Anatomia de um rio


Às margens desse rio asfixiado,
habitado pela merda expelida das casas
e o ácido excedente das indústrias,
homens pararam por um instante –
testemunharam seus reflexos no espelho
antes de seguir viagem; outros
velaram toda uma noite atrás de um peixe.

Nessas águas espessas,
violentadas pelo óleo das auto-estradas,
oprimidas pelo caldo dos bueiros,
mulheres lavaram a roupa e as mágoas;
outras se aliaram ao corpo do rio
para ajudar as flores a resistirem ao inverno
e os tomates a se rebelarem contra a seca.

Às margens desse rio viciado,
picado pela agulha dos hospitais,
assaltado pela indigestão dos restaurantes,
meninos caçaram animais que por ali se aventuravam
ou simplesmente ficaram ao vento –
que não tinha o cheiro senão do campo que percorria.

Rafael Nolli
**********************************

densidade

toda a manhã procurei
esconder dos teus olhos
esse peso na alma,
essa inquietude,
essa fome.

é pouca coisa ou, quase nada
um vago temor,
um medo que me espalma
sem pressa
apesar da calma
disfarço,
deslizo.


me escondo,
dentro da folha branca
procurando
sílabas,
palavras,
salvação
nesse poema que me entala

te engano,
te beijo
e sigo

esforço tenso
em tentar ser
densamente leve,
levemente densa

Rosa Cardoso
***********************

A Travessia

Matem-me amanhã
e serei novamente um cadáver agradecido
com um sorriso nos lábios
e a tranqüila serenidade
daqueles que não souberam que partiram,
dos que se foram sem se despedir
(lançados ao espaço por desproporcionais choques de massas)
enquanto o corpo descrevia uma parábola descendente
parando no meio do asfalto,
meio morto
(morte de cachorro louco, dia frio, na beira de um meio-fio)
Nós,
os que sempre se vão na hora errada
não queremos mais mundos obscuros
onde as lágrimas não podem passear pelos rostos
e as dores não podem ser acariciadas
à luz do dia
Todos os dias
Por conta dessa noite de virgens loucas
a poesia nada mais é que um momento trágico e mágico
eternizado por uma pena perdida
(no fel da loucura embebida)
servida em cálices altos
aos que se embebedavam
no festim da vida
E por conta de toda esta embriaguez
é que viramos a cidade de pernas pro ar,
somente para encontrar
um par de pernas
cruzadas
Os que vierem depois disso quase nada entenderão
(farão falsos discursos em monocórdios maquinados)
mas o mundo muda de repente
(à revelia)
e a travessia pode se dar à qualquer hora
confirmando assim a única certeza da vida
Meu presente para o futuro é um passado sem glórias
Ainda agarro a felicidade pelos cabelos
e a beijo sem volúpia e sem vontade
apenas para ter o prazer de lhe cravar os beiços

Cristiano Deveras
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Arrebatamento Íntimo

A neblina recortada pelo verde
simula incêndio na mata da serra,
meu corpo lúbrico no seu aferra,

musgos descem as encostas
do desejo ocultado nos corais,
lambem-me cavalos marinhos,
verde-folha – bananais,

gritos mudos ressoam – corais
nas cordas dos cavaquinhos
onde minhas cobiças urram cantos tribais.

Maria Júlia Pontes
************************************************

é a solidão
que me carrega
no dorso da palavra
até a beirada do obscuro

onde me atiro
porque me assoma
desde sempre a vertigem
e me assombra mais o medo
do que acabar

e é na queda
que o hálito do abismo
aviventa minhas asas
de inventora do impossível

é a solidão
que empilha silêncios
até emparedar meu grito
e eu, simbionte,
tomo sempre num hausto
o ultimo fôlego
e cavo frestas a lápis e caneta
até eclodir o verso
onde respiro

Iriene Borges
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A fábula do vidro e do tijolo
pela vidraça vê-se o muro
vê-se furos
no paladar!

não há o que se esconda
e se oponha
à dor de fronha
e a amores de chafariz

é tudo tão caro
que o metal não pode pagar
beijara teus tijolos
e ainda trazia na língua
os esporos alheios

enganando-se cotidiano
e os olhos secos se fecham
na esperança da chuva
da fonte na praça central.

Larissa Marques

12.1.09

bagaceira #17


Ninguém partiu


Triste
De uma tristeza que não tem fim
De uma saudade que vem chegando
Tudo de novo e volta a certeza
De saber que não volta não
Você que partiu sem dizer adeus.
.
Triste
De uma tristeza que não tem fim
Diga à saudade que vem chegando
Que tudo de novo não é certeza
Ninguém partiu e ninguém sofreu
Foi só você que quiz me ver assim...


Leonardo Quintela
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Segredos da Monarquia


Escondo-me sob o manto de rainha
Mas quero o súdito mais rude da corte
A penetrar meu ventre ordinário de mulher
Quero gritos de plebéias
Transpiração de rameiras
Gemidos de cortesãs
Que façam ecoar em meu ser as trombetas dos cavaleiros
A guerrear nas savanas do meu reino
Quero ser devorada como faisões de banquetes reais
Sobre colchões de feno
Nos currais

Dou meu cetro de poder
A quem, mesmo de soslaio possa
Retirar-me do mediterrâneo inferno
Que é viver
Sem uma centelha de prazer...

Caroline Schneider

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O Raul Cortês


nem sei de quando
vem
nem por que
vem
ou veio, ou véio, gol
veia
ou velocino da preta
véia
sem dente de
ouro
de tolo
amassa bolo
de musgo de
aveia
quac!
de olhos de
baleia
de óleos de
rícino
rico
oco
rente

o grilo falante
besuntado de hidratante
lá do cume do hidrante
profeta, profetiza
precoce, preconiza
exorbitante, exorbita
exegeta, exige a nota
cheio de banca e de pose
distribui amiúde e
de graça, conselhos de graça
sábio artrópode sapiente

sê cortês!
se és o boi de piranha
se és a bola da vez
se és o bode, a rês, o cabrito montês
se o salário não chega ao meio do mês
se o chefe dá sempre razão ao freguês
se te vendem paraguaio por escocês
se a patroa te troca pelo rico burguês
se sonhas recorrentes sonhos de embriaguez
se dois mais dois sempre dá três
se o cachorro do vizinho comeu teu gato siamês
se à tua volta se agiganta a humana pequenez
se só o que vês é cega estupidez
sê cortês!

mandou ver e mandou bem
a boa e redonda letra
que somente iletrados
e letrados sem letra
e letrados não bestas
entendem e compreendem

na birosca do Tião
pedi uma com limão
outra e mais outra
e mais outra e mais

pus rima com cuscuz
avestruz e jesus
eu vi a luz! (porque luz
tem que rimar com jesus
assim como dor deve rimar com amor)

ô tião, sangue bom,
manda mais uma, então!
senti próximo o momento
de praticar o ensinamento
veio vindo lá de baixo
o indomável furacão
poderia despejá-lo
no chão, banheiro, balcão
mas não era de bom tom
jorrei volumoso e terno
no enternado
na calça de linho
na camisa de seda
no sapato de crocodilo
desalinhado e irado
pretendeu racionalizar o desagrado
célere, desarmei o desalmado
desacelerei o celerado:
se quiseres, podes me bater
mereço ser castigado
dês a primeira porrada
se não tiveres pecado
o soco veio firme, forte, pungente
primeiro, a inconsciência
o regozijo, a seguir
constatação, revelação:
cortês fui - me dei bem - aleluia!
vi o túnel negro, vi a luz
Vi o sempiterno Jesus!
(reforço: luz, obrigatoriamente, rima com Jesus)

Carlos Cruz
*******************************

ainda me sobram
ovários estéreis
e palavras idem
não tenho mais artifícios para
(pro) criação
vagina e fala secas
rachadas no ventre
em inanição
não há cura para
(des) inspiração.

Larissa Marques

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COMERCIAIS DE METRALHADORA

Fábula segunda – esofagite

Todas as estatísticas sorriem para mim:
sou um entre as migalhas moídas pelo trânsito.

Meu nome corre entre os que matam
por gosto ou dinheiro –
capa de jornal sensacionalista, de ontem,
me explica como serei vítima de latrocínio.

Um merda sorri no algodão ariano de minha t-shirt,
e é vermelho o papel em que escrevo,
vermelhos os livros de história,
menstruados na estante.

Falo de amor contigo
em meu celular movido a lithium:
você me conta que nosso filho irá se chamar Citotec.

Somos felizes para sempre.


Rafael Nolli

* Do livro Comerciais de Metralhadora

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Les autres

Ils ne savant pas s’oublier de moi
Ils rient et bâillent tout le temps
Ils adorent se perdre dans le temps
Ils jettent ses desires sur moi
Ils croient que je ne comprends pas
Ils observent mon alluse et rient
Ils ne savant pas que je ne peux pas


Túlio Henrique Pereira
***********************************

Obedeça seu limite

Sapatos sujos, idéias nítidas e conversas sobre o silêncio são momentos que fazem parte da nossa trajetória.
Quem nunca pisou onde não previa, onde não queria? Quem nunca imaginou claramente que podia, e quando foi ver, era totalmente inviável o que havia imaginado? Quem nunca teve uma idéia brilhante, mas que de brilhante mesmo só havia o sorriso de satisfação com o gozo de ter pensando algo novo, pois quando foi transcrever para o papel o projeto foi abortado, porque sofria de má formação. Quem nunca parou para se perguntar o porquê do silêncio de alguém, o porquê do nosso próprio silêncio? Quem nunca se incomodou com a falta de palavras?
O filósofo francês Jean-Paul Sartre afirma a contingência do mundo, ou seja, para ele, o ser humano é pura existência, a essência procuramos realizar a partir do nosso existir. E existência implica em ser-humano-no-mundo, sendo assim, o filósofo nos oferece a idéia da finitude.
Quando falamos em finitude, a tendência é a associação com coisas infelizes e tristes, contanto, esquecemos que esta é a oportunidade que temos de existir, é a minha existência agora que me faz escrever esse texto e a sua existência que te faz ler este texto em meio a inúmeras possibilidades no mundo. O ser humano quer possuir tudo, até mesmo a sua própria vida, a ponto de querer eternizá-la em si mesmo. A vida é um curso e todas as vezes que paramos para tentar prolongar para além da nossa própria existência paramos esse curso, paramos de realizar a nossa essência.
“A liberdade que se revela na angústia caracteriza-se pela existência do nada que se insinua entre os motivos e o ato. Não é porque sou livre que meu ato escapa à determinação dos motivos, mas, ao contrário, a estrutura ineficiente dos motivos é que condiciona a minha liberdade”. (Sartre)
É dentro de um número de possibilidades que podemos fazer escolhas, mas, no entanto, entre as muitas escolhas que fazemos há espaço para sucessos e fracassos. O fracasso talvez faça parte desta estrutura ineficiente dos motivos que nos proporciona a liberdade de mudar, de fazer novas escolhas, afinal, se tudo fosse apenas sucesso, o sucesso não poderia existir. Para comemorar os acertos é preciso ter errado um dia, para falar as palavras mais bonitas, é preciso ter feito silêncio, é preciso experimentar a vida como fundamento da nossa própria essência.
Tradução do original de "Os outros" do livro "O observador do mundo finito".

Freddie Fernandes

10.11.08

bagaceira #16


a realidade refuta
e redunda na ilusão
sim, aquela grata ,que nos fere
e nos cala
tal chibata em tronco de perdição

talvez eu fique presa
pelo serpentear e o repique
de tua voz de gargalo
tentando convencer-me
a despir-me de luta

e quem sabe por algum minuto
ou vários, permita-me ser surda
ou solta, sem castigos ou mentiras
só ou contigo em insanidade
entregue à leviandade, cobiça da carne

por hora, sinto-me bem por não ter cedido
aos devaneios de uma vida rapariga
escondo-me ainda nesses risos falsos
em torturas desmedidas
sob meia dúzia de saias floridas

ledo engano essas verdades absolutas
como se não houvesse antônimos
nesse cárcere interno, no inferno íntimo
que ata-me ao teu terno de risca-de-giz
e ao teu chapéu de aba curta

convenci-me da relatividade de tudo
sem as certezas ou dúvidas que nos cercam
quem não vive assim,
não sabe do absurdo
que cega o santo e inspira o vagabundo

eis que nesta hora incerta, sã
por tudo que pude ter e perdi
que valho-me da falta de fé e da descrença
dou-me algumas gotas de mortal veneno
pois a esperança é que me mata.


Larissa Marques

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a realidade refuta
e redunda na ilusão
sim, aquela grata ,que nos fere
e nos cala
tal chibata em tronco de perdição

talvez eu fique presa
pelo serpentear e o repique
de tua voz de gargalo
tentando convencer-me
a despir-me de luta

e quem sabe por algum minuto
ou vários, permita-me ser surda
ou solta, sem castigos ou mentiras
só ou contigo em insanidade
entregue à leviandade, cobiça da carne

por hora, sinto-me bem por não ter cedido
aos devaneios de uma vida rapariga
escondo-me ainda nesses risos falsos
em torturas desmedidas
sob meia dúzia de saias floridas

ledo engano essas verdades absolutas
como se não houvesse antônimos
nesse cárcere interno, no inferno íntimo
que ata-me ao teu terno de risca-de-giz
e ao teu chapéu de aba curta

convenci-me da relatividade de tudo
sem as certezas ou dúvidas que nos cercam
quem não vive assim,
não sabe do absurdo
que cega o santo e inspira o vagabundo

eis que nesta hora incerta, sã
por tudo que pude ter e perdi
que valho-me da falta de fé e da descrença
dou-me algumas gotas de mortal veneno
pois a esperança é que me mata.

Anderson H.

************************************

PRONOME

"Estou aqui, mais do que isso não sei."
(Kafka)


Ontem fiz aniversário.

Ansioso, convidei a mim mesmo.
Pensei que não aceitaria, mas aceitei. Pensei que não viria, mas vim. À porta, me vi trajado a rigor, me visto bem, exercito Armanis. Me cumprimentei, teci alguns comentários sobre Rimbaud, o 3- reich e, pasmem, fiquei-me... como me gosto!
Só eu e eu na festa de mim.
Impetuoso, tomei-me logo pelos braços e me levei ao quarto, na vitrola Duran Duran, mas gostamos mesmo é de Accept, eu e eu. Na cama, entreguei-me por completo a mim, beijando onde podia e cabia e delineando a entrega do que me tinha, me possuí com completude e vigor.
Me despedi quando já amanhecia e prometi me ligar assim que pudesse. Fui.

Hoje estou sábado.
E me espero ansiosamente.




Muryel De Zoppa
*****************************

Macarrão com vatapá



Eu tenho o branco na pele
que herdei da palma da mão
dos meus antepassados,



cabelos louros Afro-Ítalo-Sul-Americanos
[encaracolados]
fragmentos do negro e do mouro,



o sangue que corre em minha veia,
escorre farto em cadeia
e nos barracos das favelas,



as lágrimas que rolam aqui,
vieram de outro quintal
no dia que a nau aportou
trazendo um certo Cabral.



Então, sou assim, preta, branca, mulata,
brasileira, faceira, incansável acrobata.


Maria Júlia Pontes
*******************************

Quem disse

Quem disse
E dirá
Ainda?
Triste foi
Mas valeu
Ter sido
Sofrido
Este amor
Que veio
E partiu.
Pois viví
O intenso
Momento
Contigo.
Não ganhei
Nem perdi
Apenas,
Te viví.

Leonardo Quintela

******************************************

10.9.08

bagaceira #15




Aruá

era passagem de ano magro.

eu e Filili,

sentados
na rede
de balança você,

embornávamos
a chegança
do boi encantado.

ele se saiu do inesperado!

do meio do vão da cerca viva!

correu pelo pasto, azuniu forrado,
acendeu o pisca alerta das guampas
e deu na carreira.

- óia, pai! óia!

o danado bateu cos casco e subiu
ambulância de queimação.

de cima das goiaberas
acaneladas
mugia presentes:

fogo, água, mel, chucaio, lanterna,
enxada, peixe, broto, boto, lenda
e fetiche.

- óia, pai! espia! é o papai noel!
- né não fia! é só o Aruá querendo peia...

Anderson H.
***********************************

SERTÕES

É Pedra que, à luz do dia, transpira e faca que, educada em pedra, emoldura a tripa.


É sede do barro costumeiro.


É o batalhar dos calos sob o reflexo solar dourado do fado.


É Lampião que, co’os pés trincados, pernambuca de chão a chão.


É tal qual o vento trafega a poeira, que sapeca o couro e dança o facheiro, esquenta o sol cajado e o cangaceiro.


É cordel cantoria, é língua quente, que afia o facão co’água ardente.


É bala-sertão no catingueiro, é matéria sofrida da morte morrida, é carcaça passante de vaga-vida na ginga poeira que sec’a flor.





Muryel De Zoppa
¨*********************

Asas de borboleta
Asas de borboleta , são meu momentos
micro-textura e diferentes pigmentos,
assim vivo das mudanças nas nuances
que se alternam entre o lilás e o negro,

desmancham-se num toque do dedo,
e voam para longe sem alarido em bando
[ igual passaredo]
os momentos que tenho vivido,

são dentes que rangem na boca da noite oca,
parede da cozinha repleta de fuligem,
lampião aceso acabando a querosene,
uma gana tamanha que herdei de origem,

e as minhas dores----- essas são leves,
e tão breves iguais-------------------------
-------------------------[asas de borboleta]



Maria Júlia Pontes
*************************************

limítrofe

devotei-me à traição
e amo-te em mosaicos conflitantes
resisto ao seu querer
e persisto dissociada
em dúvidas e orgias ficcionais
extremos passionais

soul-te inteira
sem limites tênues
errante e impulsiva
idealizo tudo
a crença utópica
do endeusar pagão
dilacero-te e peço-te
não me deixe morrer só!


Larissa Marques

***************************************

Quanto custa uma poesia?
quanto custa uma poesia?
quero uma bem bonita
que rime amor com dor
e fale de beija-flor

quanto custa uma poesia?
preciso muito dela
para encantar alguém
que me trata com desdém

quanto me custará?
sua profusa inspiração
que terei usufruto
posto acertado e justo

quanto me custará?
esses seus versos perfeitos
feito, consignado
por um amor simulado

e eu pagarei o preço!
na mancha do seu sangue
escorrido e humilhado
por ter sabido demais...

Leonardo Quintela

18.7.08

bagaceira #14



Um ataque de puro egocentrismo
Um ataque de puro egocentrismo
Excêntrico e emblemático aval
De um noivo abandonado e grávido
No inferno caótico de uma igreja

O futuro de um presente em destranque
Entre o abismo de ser fundo e mortal
Na mudança de ser o que se é de repente
Não ser o que se era em se tornar diferente

O diferente pode ser condenação
Um chamado para a morte dolorosa
Mesmo vão que fez com que acovardassem
E transformassem em carnaval

Delicado fez papel de durão
E o tirano fez-se mocinho
Tinindo tirando

Fiquei sozinho por escolha ou instinto extinto
Mas quanto mais o tempo passa mais certo fico
Fico certo qu’eu errei, tropeços, drops e drogas

Enquanto chama de ladrão o periquito
Que assistiu sua terra virar terra deles
Zé Carioca preguiçoso e caloroso
Malandro enquanto for de brincadeira

Por muito tempo confundiu minha cabeça
E embriagou minhas certezas com cachaça
Era brava e não deixou nada no lugar
E o nada só deixou mais vazio

O dano é irreversível e cruel
O mesmo fato que é fatal e desumano
Quando não entendemos mais nada sobre nós mesmos
E decidimos não gastar nossas reservas
Pois já está abaixo, o limite sempre baixo
E cada vez mais fundo fica o buraco.

Sonos
http://felipesonos.blogspot.com/

*******************

Engenharia Reversa

O marceneiro talha a forca e o berço,

O químico concebe o veneno e a cura,
O vigário que beatifica, desconjura.
E a mão que iça a lança, reza o terço.

A sombra que traz o medo dá o abrigo.
No azul que cobre o céu cruza o fogo,
Do chão que brota o verme vem o trigo
E a mão que dá as cartas, finda o jogo.

O mesmo Deus que perfilha, ignora.
A poesia que transcorre se desgasta
E a palma que se cerra, nos implora.

A mão que dá o nó arquiteta o corte,
A que diz de amor, ergue a vergasta
E a que conta a vida, versa a morte.



Jairo Alt
http://ecoscorporeos.blogspot.com/
**************************
Perdoe e esqueça-me!

se estou adiantada
e minha unha desfeita
a pretexto da tua tão
bem pintada


é que vivo esse destempero
não sei se remoçar
ou envelhecer e enrugar
invólucro decadente
com quinhão rosto ou
boceta

bastam-me os dentes
carne crua sangrando
e a desfeita no perder da dentadura

e enquanto a galinha da angola
desfeiteia-se em “tofracos”
estou forte e miro entre os olhos

desculpo-me mais uma vez
por estar na frente
e rir enquanto perde tempo
e por ainda chorar meu pai
general de alta patente
que perdeu-se
entre as putas do fronte

se não me atrasei
é por falta de zelo
e me despeço
por ter mais o que fazer!

Aline Castro

18.5.08

bagaceira #13



Canários

É quando beberica o Licor amargo
É quando, sem alvoroço,
recitam-lhe versos
os Pássaros que cantam-lhe melodias
E afina a viola e
raio, chuva e granizo
quedam
num espasmo (deleite) infindo e
gracioso

É quando o gozo

.

Muryel de Zoppa

************************

Arranhão

Acolher pragas
Semear o tétano da alma
Como se fossem as flores do campo
(enforcadas em maio)

Cuspir no amado prato
Recolher o humilhado rabo
Dentre as trêmulas pernas
Para não perder o ritmo
do rebolado

Falsificar o documento da existência
Clonar o poço da urgência
Manter-se em pé na corda bamba
feita de nervos e algodão
dizer sempre não
Quando o sim anseia um sibilo cristalino
e a alma um arranhado pequenino

Sonata enluarada...
somente parte de uma canção mais depravada

(nada que eu possa fazer pela poesia!)

Rita Medusa

*************************

De novo

Estou feliz,
Não nego.
Açucarei
Esse copo de mágoa
Que carrego

Vem,
Coisa boa,
De novo se embrenha
Nos cabelos-cinza
Calor requeimado
Da minha
máquina
de amor a lenha.

Czarina das quinquilharias

***********************

NO VIDRO

outros ônibus perpassam minha cabeça
é um reflexo translúcido e narcísico
do correr da noite às luzes
de dentro, consigo ver a via
mas não conjugo estar
condicionado a esse frio:
as pessoas da cidade vão
sem brio, com breu, sombrio
ou o pacto sempre são
de um bem estar vazio.

Leandro Jardim

*****************

ensinou-me os paraísos
em todos os sentidos
aguçou minhas sensibilidades
debulhou imprecisas possibilidades
foi-se sem aviso
dilacerar novos seres...

e no negro da noite
esperei por ti
reinventei-te
em tragos descomunais
porções de haxixe
campos de papoulas...

e no negro da noite
entreguei-me a outros braços
a outros vícios
quis-me paraíso narciso
com cipós brotando nas narinas
seus olhos habitando minha vagina...

e no negro de meu ser
seu sexo ereto em minha boca
o martírio de vitórias-regias
em meus olhos
acordo sozinha
vazia de nós.

Larissa Marques

*****************

RESTOS

Sem o sopro da vida
Continuo tentando existir
Insisto e grito
"Quero estar aqui"
Sou um emaranhado de tendões e músculos
Uma pilha de ossos tortos
Meus pobres órgãos danificados
Sou um conjunto inacabado
Sou a alma desencarnada
Ainda na terra enfronhada
Sou só
Sou pó
Mas ao pó ainda não retornei

Cristiano Deveras

************************


Não diz



Fiz um pacto com nós dois.



Fiz um pacto silencioso, unívoco.



Como se fosse um retorno ao primeiro encontro



As lembranças tornadas estáticas e ilusórias



Fiz um pacto para ser fiel a você,



Hoje não vou ser eu



Hoje, eu você eu,



Fiz um pacto sem pedir permissão,



Sem tomar decisões.



As sentenças eram olhares, gestos, toques...



Cada parágrafo um modo de ser



E, antes que julgássemos qualquer ato,



Qualquer distância



Era a pior sentença,



A sentença que eu não queria ouvir



A sentença que me condenava,



Resumida em duas palavras:



- Não posso.


Freddie Fernandes

********************

Patrocínio Editora Utopia